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Em uma visão crítica com base no feminismo, temos em Dom Casmurro a dúvida sobre a existência do adultério de Capitu, não havendo em nenhum momento algo que o comprove, permanecendo apenas como suspeitas. Sendo escrito em primeira pessoa, apresenta apenas a interpretação dos fatos presenciados pelo narrador-personagem, não apresentando em nenhum momento outras visões.
De uma forma geral, a crítica feminista é limitada e cheia de lacunas. Diz-se que, por termos apenas a visão de Bentinho dos fatos, não sabemos até que ponto ele fala a verdade. Porém, seguindo essa lógica, se tivéssemos um livro de Capitu também não teriamos a verdade, apenas sua visão. Como já dito pelo crítico Alfredo Bosi, sobre o modo como a história é contada: isso se dá apenas pelo fato do livro ser em primeira pessoa.
Boa parte das teorias sobre a dúvida, se Capitu realmente traiu ou não, foram popularizadas por Helen Caldwell - o grande pilar intelectual das teorias que tomaram conta do Brasil. No entanto ela pouco entende de português, e menos ainda sobre o Brasil. Numa de suas traduções da obra, verteu para o inglês noble e aristocrat o "peralta" da vizinhança, que José Dias sugere estar de olho em Capitu. Tinha teorias estapafúrdias com nomes próprios, dizendo que a Rua do Ouvidor é assim chamada por ser estreita, obrigando as pessoas a andarem juntas e ouvir sobre a vida alheia. Criando, dessa forma, uma análise tendenciosa, para sustentar suas ideias feministas. Por todos esses motivos, Dom Casmurro continua sendo polêmico, mesmo depois de um século de existência.
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Unanimente considerada como uma das obras-primas da ficção brasileira e colocada em destaque entre as cinco principais obras de Machado de Assis - ao lado de Quincas Borba, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Esaú e Jacó e O Alienista - Dom Casmurro nunca deixou de estar em evidência ao longo de quase um século de sua publicação, enfrentando, assim, as vissicitudes críticas comuns à obra machadiana.
Diante da inegável importância da ficção de MA e de sua fluidez, que recusa qualificativos e teorias, e não raro monta armadilhas para análises que pretendam ser totalizantes, a crítica, ao longo do tempo, reagiu das mais variadas formas. Alguns censuram em MA a falta de um compromisso mais direto com a realidade, posição que, de pernas para o ar, acabou na visão, muito em voga até recentemente, segundo a qual sua obra possuía tal universalidade que tornava impossível referi-la a um contexto histórico determinado. Outros, numa posição que também fez fortuna, destacaram na obra machadiana a atmosfera de humour, nascido de uma fusão de tristeza e enfado diante da vida. Este seria o Machado de Assis 'filósofo'.
A visão biografista, aplicada a outros romancistas de sua época, também atingiu o autor de Quincas Borba. Ao tentar explicar a obra a partir da vida do autor, o biografismo, no caso de MA, chegou ao extremo de considerar seu humour, o desencanto diante da vida que transparece em suas obras, como resultado de sua recusa em assumir a condição de mulato. Neste sentido, a visão de mundo presente na obra machadiana seria o produto de um desejo intenso, frustrado em virtude da barreira representada pela consciência da própria cor, de arianização social e branqueamento ideológico. Como em todos os casos, tal interpretação biografista não vai além de uma observação sobre o autor - que pode até ser verdadeira mas que é sempre dispensável - e nada diz especificamente sobre a obra.
Nas últimas décadas, a crítica machadiana tendeu a tomar outra direção, orientando-se decididamente no sentido de uma análise profunda da obra em si e dando especial atenção aos elementos históricos nela contidos. E então não foi difícil perceber que, ao contrário do que faziam supor muitas posições críticas até ali sustentadas, MA apresenta com extrema profundidade e de maneira bastante explícita a sociedade carioca e brasileira das últimas décadas do séc. XIX, expondo claramente sua estrutura de classes e seus mecanismos de poder.
Nos últimos anos, esta visão histórica da obra machadiana acentuou-se ainda mais.
Assim, nesta perspectiva, a incapacidade de ação, o pessimismo existencial, a crise de identidade e mesmo a loucura que caracterizam os personagens mais importantes do mundo ficcional de MA seriam o símbolo de um país econômica e culturalmente dependente e dominado por uma elite colonizada e sem perspectivas históricas diante da maré montante do liberalismo industrial/capitalista europeu, que minara, ao longo da segunda de do século, a última das grandes formações sociais escravistas do planeta.
Como se pode observar, a própria diversidade das interpretações dá bem a medida daquela que talvez possa ser considerada a mais importante das características do mundo ficcional de MA e da galeria de seus grandes personagens: o caráter esquivo e ambíguo que parece exigir e, ao mesmo tempo, repelir todos os enquadramentos teóricos.
Se o exposto pode ser considerado verdadeiro no que se refere à obra de MA como um todo, o é muito mais ainda em relação a Dom Casmurro. De todos os romances do autor, este é, com certeza, o mais popular, seja no sentido de ser, possivelmente, o mais lido, seja no sentido de abordar um tema popular, do que deve resultar, aliás, sua capacidade de atingir um universo mais amplo de leitores. De fato, Dom Casmurro é a história de uma traição. É evidente que a obra é bem mais complexa do que pode fazer supor tal afirmação, mas é inegável também que o núcleo essencial do enredo, isto é, dos fatos narrados, é formado pela existência de um triângulo amoroso e pelas conseqüências daí resultantes.
Como era natural, além de cair no agrado do grande público leitor, o casal de protagonistas, Bentinho e Capitu, tornou-se, ao longo do tempo, um dos centros de atenção das análises feitas pela crítica a respeito de Dom Casmurro, a tal ponto que, em alguns casos, o romance ficou reduzido a única questão: Capitu traiu ou não traiu? Sob este ponto de vista, Dom Casmurro passou a ser não a história de uma traição - afirmação sem dúvida abonada pelo texto - mas a história da dúvida sobre uma traição, o que, a partir de uma leitura honesta, é uma evidente e injustificada extrapolação. Para Bento Santiago, o narrador, não há a mínima dúvida do valor das provas circunstanciais de que dispõe: Ezequiel é filho de Escobar. E o texto não coloca, em momento algum, em questão o valor destas provas circunstanciais, nem do ponto de vista objetivo - o valor em si das mesmas - nem de um ponto de vista subjetivo - a capacidade de discernimento do protagonista. No texto, Bento Santiago é antes um ingênuo - por perceber tarde demais o problema - do que um manomaníaco ou um obsessivo. Ele é apresentado, aliás, como um exemplo perfeito de normalidade, segundo se pode deduzir de sua vida posterior à morte dos que o rodeavam. Afirmações como 'o texto é uma visão distorcida, pois é a visão de Bentinho' ou 'a narrativa de Capitu seria diferente' são hipotéticos absurdos, a não ser que se queira ver Dom Casmurro como uma grande armadilha montada por este mestre da narrativa que é MA com o objetivo de divertir-se às custas de seus leitores de todas as épocas.
Seja como for, esta discussão acabou sendo muito justamente relegada a um plano sem importância e a crítica prefere hoje salientar elementos cuja presença no texto é inegavelmente sólida. Em primeiro lugar, retomando o velho tema, nunca abandonado nos estudos sobre Dom Casmurro, do humour machadiano, procura analisá-lo em outro plano, localizando-o historicamente. Nesta perspectiva, a mistura de serenidade e desencanto perante a vida - encarnada por Bento Santiago mais do que por qualquer outro personagem de Machado de Assis - deixa de ser apenas um genérico olhar de tristeza lançado sobre a condição humana e passa a símbolo da falta de perspectivas e da decadência de uma elite que, sobre uma estrutura escravista, montara uma paródia aristocrática nos trópicos dominados pelo empuxo avassalador do capitalismo industrial anglo-francês. Sereno mas incapaz de ação, conformado mas pessimista, Bento Santiago carrega em si o fim de um tempo e, em sua lucidez, vinga-se de todos, a todos sobrevivendo e de todos fazendo o necrológio.
Um necrológio, contudo - e este é o segundo ponto em que insistem mais recentes - que é um registro minucioso da sociedade do RJ e, por extensão, do Brasil litorâneo da segundade do século passado. Do prosaico dia-a-dia da cidade aos valores culturais então dominantes, das formas de namoro às relações de classe, da estrutura do casamento à estrutura econômica e aos caminhos de ascensão social dentro dela - um dos quais a carreira eclesiástica -, tudo aí está fixado para a posteridade com o rigor de um gravurista. Com o rigor de um mestre da narrativa realista/naturalista do Ocidente, na qual sem dúvida, Dom Casmurro tem um lugar reservado.